Regressar a Casa: uma parceria entre a Escola de Mulheres e a ACERT

Em conversa com Ruy Malheiro e Marta Lapa, diretores artísticos da Escola de Mulheres, descobrimos que para eles, e toda a companhia, voltar à ACERT é como voltar a casa. O desenvolvimento da parceria entre as duas instituições e detalhes sobre a nova criação "A Companhia dos Lobos", que trazem à nossa sala, são desvendados ao longo da entrevista, em que refletem sobre a relação especial com a ACERT e as suas expectativas para o público de Tondela.

 

Como é voltar à ACERT?

Para a Escola de Mulheres, voltar à ACERT é um voltar a casa, onde somos sempre felizes. A ACERT é daqueles locais onde nos fazem sentir como fazendo parte de e não uns meros visitantes. Somos sempre recebidos com enorme profissionalismo, mas também com um lado de cumplicidade que não se consegue em muitos locais.  Sempre que se agenda uma nova visita a Tondela, a mesma é sempre motivo de regozijo de toda a equipa dos projetos que aí temos levado.

 

Ao longo dos anos têm desenvolvido uma relação de proximidade com a ACERT. O que podemos saber sobre a vossa ligação?

Esta ligação nasce de um protocolo de intercâmbio que iniciámos em 2018, permitindo-nos a nós, Escola de Mulheres, levar a Tondela algumas das nossas criações e trazer ao nosso espaço, a Sala de Teatro do Clube Estefânia, produções da ACERT. Esta parceria entre as duas companhias tem permitido a ambas promover o combate às assimetrias de acesso às artes e dinamizar, desta forma, a circulação inter-regional das criações de ambas as companhias. A salientar ainda que esta relação ultrapassa o nível meramente profissional, tendo contagiado as relações interpessoais com as equipas, por isso, voltar à ACERT é voltar a Casa e à Família!

 

Que espetáculo é este, “A Companhia dos Lobos”?

Este espetáculo nasce do convite feito ao Francisco Camacho para encenar para a companhia, tendência esta, a de convidar encenadores externos, que faz parte do caminho que a companhia desenhou para si no quadriénio 2023-2026. Ao Francisco interessava trabalhar textos radiofónicos, de autoria feminina, e foi desta forma que chegamos a Angela Carter, escritora britânica, considerada pelo Jornal “The Times” uma das 50 mais importantes escritoras inglesas. Com este espetáculo damos continuidade à nossa missão de divulgação de dramaturgia de autoria feminina e de revelação de autoras em estreia absoluta em Portugal como anteriormente Caryl Churchill, Paula Vogel ou Catherine Verlaguet. Angela Carter foi uma escritora notável com um papel fundamental na literatura ao abordar pioneiramente questões de género, poder, sexualidade e violência de forma inovadora, provocatória e feminista.

«A Companhia dos Lobos» é um conto publicado em 1979 no livro "O Quarto dos Horrores" e adaptado pela escritora para nova versão em teatro radiofónico um ano mais tarde. Trata-se de um texto representativo de várias características da escrita da autora, como a releitura de contos de fadas (no caso, uma releitura de «O Capuchinho Vermelho»), que afirma uma visão feminista, contrariando as representações repressoras do papel das mulheres.

É inerente a um texto teatral radiofónico uma invisibilidade de partida, com o repto ao conjunto de ouvintes de imaginar livremente os acontecimentos que ouvem e os ambientes descritos, e de associar figuras às vozes que escutam. Esta encenação articula essa dimensão com o desafio de paradoxalmente dar a ver algo que deveria ser imaginado por quem ouve, numa perspetiva de desdobramento de sentidos e estabelecendo outras ligações. Quer-se estimular o imaginário de quem assiste e escuta, e a ação cénica não se circunscreve a uma representação do texto, extrapolando este para a criação de outros momentos performativos. Uma outra vertente assenta na manipulação de diferentes materiais para a produção de sons em direto, inspirada pela prática dos artistas de Foley que geram e recriam sons para produções audiovisuais.

A Companhia dos Lobos vai da transmissão sonora ao espaço cénico, e passa pela imagem filmada, amplificando a sucessão de histórias que são contadas na peça radiofónica. A abordagem lúdica do espetáculo ecoa a fantasia e o humor que embalam a visão crítica de Angela Carter. A sua releitura de contos de fadas afirma uma visão feminista, contrariando as representações repressoras do papel das mulheres. A autora liga a defesa da emancipação das mulheres e da sexualidade destas à dualidade humana e animal, com a importância de atender ao instinto e ao desejo, e acenando a um triunfo simbólico da natureza sobre a crença de pendor religioso.

 

O que esperam do público?

Como tem vindo a ser uma constante, temos um público já fidelizado com as criações da Escola de Mulheres em Tondela, esperamos poder surpreender, de alguma forma, com esta nova criação.

 

De que forma podemos relacionar este espetáculo ao 25 de Abril, sendo que continuamos nas comemorações dos 50 anos.

Na realidade este espetáculo não tem qualquer relação com o 25 de Abril, a não ser o facto que antes do 25 de Abril, este espetáculo jamais poderia ser levado à cena em Portugal.

Convém, contudo, salientar que se trata de um espetáculo em que há uma determinada cor que é determinante.
É um espetáculo que fala sobre metamorfoses, da inocência à idade adulta. Metamorfoses físicas, mas também metamorfoses políticas.
Trata de relações de poder, do Patriarcardo, de emancipação.
Angela Carter era profundamente socialista, além de feminista, e para ela, tudo era político. Muito à frente do seu tempo, Carter explorava já as questões de género e o espectáculo sublinha a inevitabilidade de seguir-se "o apelo da natureza"! Cada um seguir a sua.
Sendo socialista, Carter acompanhou as notícias da Revolução Portuguesa com extraordinário entusiasmo e interesse. Três anos depois da Revolução colocou-se a oportunidade de vir a Portugal e ela aproveitou-a e veio, acompanhando um casal de amigos escultores e performers, para um encontro de arte contemporânea nas Caldas da Rainha. Sobre esse evento escreveu em dois artigos jornalísticos para a revista marxista New Society, nos quais relatou a sua experiência nas Caldas a situação política que testemunhou, as condições da população. Uma reflexão sobre o momento pós-revolução a nível social, económico e político. Carter também abordou aspetos identitários, como as cerâmicas e as questões culturais da época.

Mais informações no programa do espectáculo em https://acrobat.adobe.com/id/urn:aaid:sc:EU:da2b732d-aaf8-48c4-bd77-913652a93cd5

 

Expliquem um pouco do que é a Escola de Mulheres.

A ESCOLA de MULHERES, foi criada em 1995 em Lisboa por um conjunto de mulheres de gerações diferentes e experiências diversas e reconhecidas, mas com o sentimento comum do papel de subalternidade a que a mulher foi sendo reduzida no Teatro português, quer na condução dos processos criativos, na política de repertórios ou no relacionamento com os poderes instituídos, bem como, de um modo geral, nas tarefas que envolvam poder de decisão.

Pretendeu-se, desde sempre, privilegiar a criação e o trabalho feminino no Teatro e promover e divulgar uma nova dramaturgia de temática e escrita femininas, quer nacional, quer estrangeira, na medida em que o repertório habitualmente representado nos nossos palcos não refletia o papel que nas últimas décadas a Mulher tem vindo a desempenhar, assim como as novas contradições que daí advêm, vinculando quase sempre pontos de vista masculinos sobre as mulheres e reproduzindo universos tipicamente masculinos.

Em 2025 a companhia celebra 30 anos de existência e seria expectável, passado tanto tempo, que as questões que levaram à sua fundação estivessem hoje menos presentes. Assinalam-se bastantes mudanças, há mais mulheres a dirigir processos criativos e companhias de teatro, mas ainda em número inferior às lideradas por homens, são muito poucas as mulheres a encabeçar a direção artística ou a programação de salas de espetáculo, portanto essas mesmas questões mantêm-se e são o nosso mote de afirmação e continuidade.

Desde a morte de Fernanda Lapa (2020) que a direção artística da Escola de Mulheres é assumida por nós (Marta Lapa e Ruy Malheiro) e a nossa preocupação tem sido a de apostar numa renovação da companhia, sem romper com as questões base da sua fundação. A atividade da companhia tem vindo a ser pensada e desenhada em função das questões que nos são urgentes, com a morte da Fernanda tivemos necessidade de fazer uma reflexão profunda sobre a companhia e o seu futuro e constatámos a importância que tem para nós a MEMÓRIA, temática que assumimos para toda a atividade do quadriénio 2023-2026, da criação à programação, desenvolvimento de públicos e formação. Com a atividade regular sediada no SALA DE TEATRO CLUBE ESTEFÂNIA, desde 2008, a Escola de Mulheres aposta uma programação regular no seu espaço, apresentando as suas criações próprias e acolhendo companhias e artistas, maioritariamente emergentes, mas não só,  garantindo a regularidade de uma oferta de programação diversificada e de qualidade, contribuindo desta forma para uma fidelização, cada vez maior, de públicos, promovendo o desenvolvimento da oferta cultural na zona da cidade em que se encontra, fruto de um trabalho de serviço público com que a companhia sempre se preocupou. A companhia tem tido nos últimos anos um papel único, que carece de reconhecimento, no acolhimento de novos criadores e companhias emergentes, criando condições para que no seu espaço possam criar e apresentar os seus trabalhos, que de outra forma, dificilmente veriam a luz do dia, viabilizando, assim, o crescimento e consolidação de muitas estruturas emergentes, sem espaço próprio de criação e de apresentação e que maior dificuldade têm em aceder ao circuito instituído das salas de programação da cidade.

Se a companhia é pioneira na programação em regime de acolhimento, tem-no sido em muitas mais vertentes, como por exemplo, temos apostado na realização de formações/audição para as nossas criações, nas quais selecionamos os elencos ou parte deles, como forma de alargar o leque de parceiros, mas também criando oportunidades de trabalho, combatendo a precariedade do sector, com a oferta de condições dignas de trabalho e proteção social. Mantemos a aposta no convite à escrita original para ser levada à cena, maioritariamente feminina (Lígia Soares, Ana Sampaio e Maia, Ana Lázaro, Ilda Teixeira, Miguel Castro Caldas, são exemplo disso), bem como estendemos o convite a encenadores externos, (David Pereira Bastos, Francisco Camacho ou Cucha Carvalheiro) para dirigirem processos criativos para a companhia, que com a sua visão e trabalho artístico contribuam para esta renovação que queremos da companhia, sem menosprezar, ou ignorar as premissas que estão na base da sua fundação.