ENTREVISTA
Conte-nos a história da companhia O Último Momento. Está sediada em França, mas muito conectada a Portugal. Como surgiu?
A companhia foi criada pelo músico Guillaume Dutrieux e por mim, em 2004, quando criei o meu primeiro espetáculo que se chamava “Peut-être” que estreou na ACERT.
A companhia foi estabelecida com o intuito de criar esse primeiro espetáculo, uma criação para um concurso de Jovens Talentos de Circo, na altura, em França, que ganhei. E era um apoio do Ministério da Cultura francês mais uma série de organismos associados ao evento.
Na realidade, inicialmente, a companhia tinha mais essa função de albergar esse projeto. Depois, a partir desse momento continuei a criar os meus espetáculos. Primeiro com o “Peut-être”, que foi em tournée pelo mundo inteiro. Em 2006 fui convidado pela SACD (Sociedade dos Direitos de Autor, em França) e o Festival d’Avignon parar criar um espetáculo que, na altura, chamámos “Contigo”. Daí em diante a companhia continuou a fazer o seu percurso, a criar espetáculos e a ir em tournée.
A particularidade da companhia é, simplesmente, ser uma companhia de novo circo com uma base de linguagem, sobretudo, com o mastro chinês que é o aparato com o qual fui formado na Escola Superior.
A companhia tem uma relação muito forte com Portugal porque sou português e é um organismo que tem estatutos, mas na realidade sou quase a única pessoa a trabalhar. Em cada espetáculo faço colaborações com pessoas específicas que venham da área do circo, da música, técnicos,... mas, na verdade, é um instrumento para poder continuar a criar.
Porquê o novo circo e o mastro chinês? Foi uma paixão que descobriu cedo?
Em Portugal comecei a fazer a escola de circo do Chapitô em 1995. Em 1997 tentei entrar para a Escola Superior em França para continuar a minha formação, mas só fui aceite em 1999 (CNAC - Centre National des Arts du Cirque). Aí comecei a desenvolver o mastro chinês, que não conhecia até essa altura.
O novo circo, desde que comecei a praticar, foi sempre o que quis fazer porque tem a possibilidade de cruzar uma série de linguagens artísticas e é como se, à imagem de um pintor, essas linguagens fossem os pigmentos. Quanto mais cores posso usar, mais diversidade vai haver naquilo que vou contar.
Sobre o espetáculo que vem apresentar, “Une Partie de Soi” (“Uma Parte de Si”), esteve em pesquisa durante a pandemia. Esta peça foi inspirada em quê?
Esta peça é uma consequência do meu percurso. É óbvio que é uma inspiração, e há vários elementos de inspiração que foram direcionados para chegar a um elemento final – o espetáculo –, mas é o percurso que fiz e com o qual fui acumulando uma série de experiências e constatações. O mastro chinês é o aparato com o qual criei mais de dez espetáculos e à medida que os vou criando há uma vontade de reinventar a linguagem que tenho.
Até a um ponto da minha vida não tinha grande capacidade para perceber que havia outras possibilidades de interação com esse aparato porque tinha uma formação muito presente, ainda, com a linguagem acrobática. Para poder deixar esses elementos, que me forjaram, a linguagem de qualidade e rigorosa, que me permitiram chegar onde cheguei... por isso é que falo de uma maturação de um percurso para chegar a este espetáculo... cheguei a uma certa idade, que já não é a idade do acrobata novo com a vitalidade e energia toda que tem, em que as coisas começam a ser vistas de outra forma pelo olho de artista.
Há um momento que tenho de aceitar que aquilo que posso dar pode ser mais profundo que a superficialidade de uma figura acrobática e não é por isso que ela deixa de ter interesse. Há alturas para fazer espetáculos com vigor, proeza, destreza... e outras em que chegamos a uma fase da nossa vida que temos vontade de ir para algo mais interior, pessoal e íntimo, e foi isso que quis fazer com este espetáculo: criar um universo que já está cá, mas procurar um caminho diferente. Tive que, de uma certa forma, modelar a minha aproximação com o aparato. Aprender a fazer mastro de outra forma, moldar o meu corpo e a minha capacidade física porque tem uma intensidade muito diferente daquilo que eu fazia.
Antes era uma intensidade explosiva e fragmentada, falando só na partitura física, como fogo de artifício. Aquilo que vou fazer agora é muito mais contemplativo e denso.
É por isso que neste espetáculo reinventa o mastro chinês?
Exatamente. Na minha visão e na minha prática o que tentei fazer,pelo menos por mim, não foi visto em lado nenhum.
Aquilo que quero não é dizer que vou fazer algo que os outros não fazem. Apenas é uma pesquisa pessoal e tem a ver com a necessidade de transformar a minha aproximação com o aparato porque cheguei a um ponto em que aquilo que fazia já não me estimulava. Por vezes tem de se encontrar outra motivação.
Como é a relação que tem com a ACERT?
Como disse inicialmente o meu primeiro espetáculo estreou aí. A ACERT encontra-se em Tondela, os meus pais, já falecidos, eram de perto de Viseu, portanto uma distância muito próxima de ponto de vista geográfico.
As pessoas que encontrei aí, sobretudo, acolheram-me muito antes de ser o João Paulo que sou hoje. Muito rapidamente aceitaram-me e deram-me as condições de trabalho que nunca tinha tido em Portugal.
Tenho uma relação de amizade, e família, com as pessoas que tenho aí: o Pompeu, o Zé Rui, o Paulo Neto... que são coisas preciosas que levamos connosco.
Portanto é sempre bom voltar a esta casa, que também é um pouco sua?
Não posso dizer que ela é minha [risos], mas sei que faço parte dela. E que uma parte da minha história foi aí feita.
Tenho muita honra de cada vez que vou à ACERT porque também é a continuidade de uma amizade que perdura.