Ninguém liberta ninguém sem ser livre como o pão

 

O 25 de abril de 1974 foi uma festa e uma revolução. Uma festa do “dia inicial inteiro e limpo” em que “livres habitamos a substância do tempo” (Sophia) e uma revolução sob a forma de êxtase ou de quase “bebedeira” com o gosto e o sabor da liberdade. 

Cinquenta anos passaram. Com muitas histórias e estórias, vitórias e fracassos, sonhos e desilusões. “E agora, povo português?”, perguntava Jorge de Sena e voltamos nós a perguntar hoje.

Aprendemos dificilmente que a liberdade não é um dom, mas uma conquista, e não é um estado, mas um processo. Poderão oferecer-nos as condições para o exercício da liberdade (e por no-las terem oferecido estamos gratos aos militares de Abril), mas livre só o é quem a vai assumindo num processo árduo de transformação interior e de realização exterior, porque tanto nos aprisionam grades, algemas e grilhetas, como também ideias, preconceitos, e dogmatismos, que se refletem em comportamentos excludentes e opressores. Por isso, não basta vestir o fato da liberdade num qualquer pronto a vestir de receitas mágicas do viver em sociedade; é necessário mastigar, digerir e absorver o pão da liberdade que irmana todos os seres humanos nos seus sonhos de formas luminosas de existência, respeito e hospitalidade. E pode haver um dia em que rebentem no ar os foguetes da festa da liberdade, como rebentaram em Portugal em 1974, mas esse é apenas um primeiro dia, um “dia inicial” de um longo processo que é um processo de uma existência e de muitas vidas, feito de pequenos passos, de gestos simples, de contínua conversão interior à própria liberdade. Nunca estamos já inteiramente livres. Todos os dias conquistamos um pouco mais da nossa liberdade.

Porque a liberdade é impulso, pensamento e ação. Impulso, que nasce por dentro, por dentro do corpo e por dentro da alma que é o interior do corpo, e que gera sentimentos, sonhos e paixões, mobilizando-nos no todo que somos. Pensamento, que é feito de ideias em movimento e renovação permanente, cujo significado se mede também pela sua energia e pela sua capacidade de gerar utopias, mundos possíveis configurados por conceitos em que se diz a igualdade, a justiça, a democracia e a paz. E ação, que é a projeção exterior daquilo de que adivinhámos o impulso e de que concebemos o sentido nas mais variadas formas de intervenção.

Em junho de 1976, sonhando ainda os cravos de Abril, mas já dececionado com alguns que iam murchando, tentei dizer tudo isto nos primeiros versos de um poema que então escrevi e que continuam atuais:

 

Ninguém liberta ninguém
sem ser livre como o pão!

 

Sem ser farinha moída
depois de trigo dourado,
sem sentir na própria vida
Prometeu agrilhoado
e sem fazer das grilhetas
o archote de uma canção
ninguém liberta ninguém
sem ser livre como o pão!

 

João Maria André