A Primavera para mim chega sempre em Abril. Porque em Abril eu renasço. Eu fico manifesto. Eu transmuto. E não é só porque tenho dentro de mim todos os sonhos do mundo. É porque eles parecem-me mais verosímeis, mais próximos que nunca.

Desde há muitos anos, o ritual desse vigésimo quinto dia de Abril começa religiosamente de manhã. Ponho a “Grândola Vila Morena” num volume  excessivamente alto, impelida por uma vontade de evangelizar o bairro, os vizinhos e de acordar todas as mulheres e todos os

homens que dormis a embalar a dor, 

nos silêncios vis. 

Vinde no clamor das almas viris

arrancar a dor que dorme na raiz. 

 

Não me lembro do primeiro ano que desci a avenida nem da primeira vez que passei a noite de 24 no Carmo. Vasculho nos confins da memória – examino, observo, especulo e tento reunir o caudal de micro-memórias que uma data me evoca.

 

Estamos no ano de 1994. Celebram-se os vinte anos do 25 de Abril dez dias antes de cumprir as minhas 14 primaveras. Nesse ano, dois pequenos e insignificantes passos para a Humanidade, mas determinantes para a vida de uma idealista jovem alfacinha: 1) ela decide aprender guitarra para poder cantar as músicas do Zeca; 2) Faz um trabalho para a disciplina de História que ficaria para a (sua) história. 

Quase no final do ano e por não haver tempo para dar toda a matéria, a professora de história pede-nos um trabalho sobre o 25 de Abril. Eu sempre adorei História, mas estava um bocadinho farta de estarmos sempre a dar os gregos e os romanos e aí por diante, e quando chegávamos à parte que mais me interessava – a história contemporânea – acabava o ano. E também é preciso dizer que no manual de História, o Estado Novo ocupava duas páginas e o 25 de Abril, uma. E talvez por isso, eu tivesse decidido que não iria abraçar essa tarefa de forma leviana. Fiz pesquisas na Biblioteca Nacional, no Centro de Documentação 25 de Abril, fui ao arquivo da Torre do Tombo e entreguei à professora um trabalho com 219 páginas, que começava com aquela quadra da Sophia:

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo 

 

Não tenho a certeza se esta introdução preambular pode demonstrar a importância do 25 de Abril na minha vida, mas a verdade é que para mim ele nunca será apenas um evento, uma efeméride, um feriado. Mais do que uma revolução, ele constitui um marco fundacional na minha vida. Moldou de forma muito particular a minha maneira de ser, influenciou as minhas decisões, direcionou a minha ética, constituiu os alicerces sobre os quais toda uma arquitectura existencial se edificaria.

 

Por causa dele resolvo ir estudar Direito para Coimbra, onde por linhas tortas vou parar às Repúblicas, iniciando uma marcante vivência colectiva. E também por ele (e por amor à tal jovem idealista que nunca deixei de ser) desisti do curso quando percebi que não seria aquele o lugar para acabar com as injustiças do mundo.

Por causa dele fiz uma coisa e o seu contrário. Abracei causas, firmei compromissos, fiz pactos, amizades e alianças, tive epifanias.

Por acreditar nos seus ideais de justiça, liberdade e emancipação fiz a primeira (e a segunda) campanha para a despenalização do aborto numa Coimbra conservadora, católica, reaccionária, onde fui acusada de criminosa e imoral.

Por causa dele fiz vigílias, marchas, manifestações. Engoli sapos, desobedeci, suportei injúrias, perdi horas a discutir política no Café Tropical. 

Foi por ele que comecei a fazer teatro, a tocar guitarra, a viajar. Que aprendi a erguer a minha voz. Que decidi ser artista - sujeita a muito menos estigmas, preconceitos e obstáculos que as artistas mulheres que me antecederam tiveram que suportar. 

Com ele aprendi que a “cantiga é uma arma” e que a arte e a ética serão sempre indissociáveis.

Graças a ele devorei literatura revolucionária, passei noites em claro e perdi a voz a entoar o cancioneiro de Abril que tem as mais lindas canções de protesto do mundo. Foi numa dessas noites, na República dos Kágados que ouvi pela primeira vez o “FMI”.

E se inventássemos o mar de volta?

E se inventássemos partir, para regressar?

 

É por isso que eu renasço em Abril. Em Abril eu fico manifesto. Fico rouca. Abraço, abraço, abraço. Os abraços que se dão no 25 de Abril são abraços diferentes daqueles que se dão durante o ano inteiro. São abraços de corpo inteiro, de alma aberta, de profunda camaradagem, de ilimitada esperança. Como se todas as utopias do mundo coubessem nesse abraço. São abraços que falam sobre a renovação de laços, sobre a nossa resiliência, do nosso potencial enquanto colectivo mas também sobre a nossa fragilidade e impotência. Ilumina os nossos vazios mais sombrios, o tal “medo de existir”, como o José Gil tão bem nomeou. Lembra-nos da nossa matriz mais profunda, desta herança e legado que afortunadamente recebemos, da preciosa res publica, a “coisa pública” da qual somos cuidadores.

Porque “o que faz falta é dar poder à malta”, não é Zeca?

 

Muitos dirão: “essa não é a minha história”. Sabemos que a História poderá ser sempre ressignificada, branqueada até. Da mesma forma que podemos apagar experiências traumáticas ou adulterar memórias. Como uma senhora que entrevistei em 2017, durante o processo criativo do espectáculo “Os filhos do Retorno” com o Teatro do Vestido. Ela dizia que em Angola não havia guerra e que os militares morriam porque se embebedavam ou pisavam minas. Mas depois de uma longa pausa, abre muito os olhos e diz: “a história é o que nós quisermos que ela seja. Acha que vou contar os podres ao meu filho? Também soube mais tarde, que havia outras versões da história que a família me contou. Mas acha que vou escolher qual das versões – a boa ou a má?”

 

Que caminho tão longo

Que viagem tão comprida

Que deserto tão grande

Sem fronteira nem medida” 

 

Agora estamos em 2024. Há três meses atrás celebrámos os 50 anos do 25 de Abril. A poesia saiu à rua e éramos “sete rios de multidão que levavam a história na mão” como na Confederação do GAC. E éramos tantos que quase que nem cabíamos na Liberdade, não fosse ela infinitiva e ilimitada. Celebramos essa liberdade num “coro da primavera” com panos vermelhos, dançámos, cantámos, gritámos. Demos o corpo ao manifesto, literalmente. Corporificamos a revolução, somatizando a esperança.

E aqui estamos nós.

Matéria humana em (re)construção. Em impermanente sustentação, em permanente tensão, entre a luta e a paz, entre a resiliência e a coexistência. 

A inventar o futuro, eternos aprendizes e herdeiros de uma corajosa linhagem.




Nota: Com excepção do excerto da Sophia de Mello Breyner, todas as citações são excertos de músicas: "Acordai” de Lopes Graça; “FMI” de José Mário Branco e “Travessia do Deserto” de José Mário Branco.

Cláudia Andrade, Julho 2024