TODOS OS DIAS SÃO DIAS DE ABRIL

  Qualquer celebração tem o seu lado ritual. A do 25 de Abril, para mim como para milhares de pessoas, implica descer a Avenida da Liberdade, em Lisboa, do Marquês de Pombal até ao Rossio, e cantar a “Grândola, Vila Morena”. Já houve anos em que falhei o ritual e senti a falha como devem sentir as pessoas que falham a noite de Natal. Se o ritual for a única coisa que mantém viva a celebração, pouco nos resta. É por isso que posso falhar o ritual, quando o trabalho obriga, mas não falho a  importância fundadora e estruturante que o 25 de Abril tem para mim. Todo o ano, todos os anos. 

  Numa das peças musicais que mais vezes terei ouvido, José Mário Branco ironiza: «saímos à rua de cravo na mão, sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, n'é filho?» Lembro-me sempre destes versos do FMI quando chego de metro ao Marquês, pronta para o desfile. O problema não está em sair à rua de cravo na mão naquele dia, mas na desconfiança, demasiadas vezes feita certeza, de que só nos permitimos cumprir Abril assim, em modo ritual, uma vez por ano e nos limites da avenida. A luta, então, será o gesto de contrariar a singularidade desse dia, porque o que nele se guarda tem de valer o ano inteiro. Será por isso que o mais comovente da descida da avenida não são as chaimites restauradas ou os discursos, mas as trocas de abraços e olhares, o encontro com pessoas que caminham lado a lado, com quem já caminhei noutros lugares, noutros tempos, e com quem sei que conto ainda hoje, sobretudo hoje, quando a democracia conquistada há 50 anos se vê ameaçada. Não é exagero, isto da ameaça, e sei que contamos uns com os outros para a contrariar. 

 O 25 de Abril não está fechado na Avenida da Liberdade. Não tendo vivido esse dia primeiro, o de 1974, tenho tido a sorte de o viver de muitas maneiras e em muitos lugares – na escola e na faculdade onde estudei, nas associações em que participei, nas conversas e planos e sonhos partilhados à mesa ou na rua. Um desses lugares é Tondela, e a ACERT no seu âmago. Nessa casa a que hoje também chamo minha, Abril não é uma efeméride, é uma prática quotidiana: a aprendizagem em conjunto, a criação que nasce do questionamento e a vontade de construir coisas – máquinas de cena ou pontes em trânsito para os mais recônditos lugares – são uma caminhada colectiva cujos passos não precisam de se fazer na avenida lisboeta. Fazem-se aqui também, com a mesma dedicação no ritmo, os mesmos encontros e reconhecimentos, mas todos os dias. E sem hora certa. 

Sara Figueiredo Costa