2006
2006
Cantos da Língua
Celebrar, em espectáculo e CD, uma viagem de 26 anos…
Desde 1980 que o Trigo Limpo teatro ACERT desenvolve uma criação regular de iniciativas onde a palavra é a protagonista, alimentando namoros entre teatro, música e poesia.
Num primeiro momento, nasceu a declamação de José Rui Martins com instrumentistas ocasionais e decididos à aventura. Num período mais longo, juntou-se-lhe o talento de Carlos Clara Gomes em formatos de espectáculo distintos, com muitos outros músicos.
Em 1999, Soltar a Língua dá um novo impulso ao projecto, com a participação constante de Carlos Peninha, Mariana Abrunheiro e, mais tarde, Miguel Cardoso.
Este novo “CANTOS DA LÍNGUA”, estreado em Março de 2006 (num ano que marca os 30 anos de actividade da ACERT), enforma um trabalho que, embora não distanciado da sua natureza artística primordial, assume contornos de um desafio criativo mais louco e exigente, passando a contar com a nova sonoridade da violoncelista Lydia Pinho.
Desejámos correr riscos apaladados por um repertório cujos originais expusessem a nossa convicção em comunicar com a palavra – dita e musicada – feita espectáculo. Carlos Peninha tirou do seu baú musical preciosidades contagiantes, num CD que desvenda trilhos da arte de celebrar a palavra dita, contando ainda com o contributo fraterno de músicos convidados do nosso encantamento.
Sons, arranjos e interpretações tomaram a medida de um empenho e compromisso colectivos, salientando a dimensão e sentido dos escritores que nos matam solidões.
Um CD que, mesmo antes do estúdio, já tinha ganho rodagem junto de audiências em muitas partes do país. A selecção dos temas editados não esgota o repertório daquilo que, ao vivo, permanentemente reanimamos.
Temos procurado brindar o público com um sinal que possa fazê-lo refrescar os nossos próprios sinais, salvaguardando esse momento irrepetível, que apenas no palco se proporciona, enquanto exercício onde nos oferecemos com a genuinidade exigida por cada plateia e ocasião.
Contámos com os preciosos afectos de dois talentos da música portuguesa da actualidade, Amélia Muge e José Martins. Este trabalho possui, sem dúvida, o toque da sua distinta genialidade de músicos e companheiros de aventura. Que encanto tê-los connosco nesta viagem…
Enfim, tanto o Livro/CD como o espectáculo são portadores de uma comunicação com as deliciosas ignorâncias que a língua nos guarda, e que desejamos continuar a praticar, através de uma partilha daqueles desassossegos com que a arte exalta a vida.
TRIGO LIMPO teatro ACERT
Novembro 2006
PARA QUE A LÍNGUA PORTUGUESA PERTENÇA A TODOS OS QUE A TRATAM BEM!
À Carla Torres que, com a sua “Bicicleta de Recados” e amizade de sempre, me demonstrou que a viagem se faz sonhando…
Ao Mário Viegas e à Maria do Céu Guerra, meus Mestres na arte de dizer.
Citando Fernando Pessoa, “A linguagem fez-se para que nos sirvamos dela, não para que a sirvamos a ela”, pelo que esta edição do LIVRO/CD mais não ambiciona do que ser um modesto contributo para o reconhecimento da importância da língua portuguesa, não como instrumento de dominação cultural, mas como ferramenta de partilha entre os falantes dos vários países que a adoptam para comunicar. Só assim ela se rejuvenesce e se afirma com vitalidade, regressando às origens que a matizaram na confluência de várias culturas.
O Português é a sexta língua materna mais falada no mundo e a terceira a nível europeu, logo a seguir ao Inglês e ao Espanhol (1). Trata-se do idioma oficial de oito países de quatro continentes. Na Galiza, fez-se uma Candidatura de Património Imaterial Galego-Português à UNESCO. Além de tudo isto, importa tornar vivos os dialectos e as línguas autóctones em cada um dos países, evidenciando uma atitude cultural de reconhecimento das suas identidades.
A selecção dos autores que musicámos ou teatralizámos não se encerra nesta edição, prolongando-se na revisitação que pretendemos manter nos espectáculos.
Desejamos que os textos apresentados, mesmo não abrangendo todos os Estados onde se fala português, simbolizem o sentido universalista de uma homenagem, num modesto exercício artístico que queremos compartir apaixonadamente com o público.
Um agradecimento sincero a todos os escritores que nos provocaram esta ousadia, ajudando-nos a exaltar a força da língua portuguesa, a vivenciar momentos de prazer e a experimentar a felicidade de sonhar, de reflectir e de preservar um inquietante sentido crítico.
José Afonso e António Quadros (Grabato Dias), já com temas no CD anterior, fidelizam as nossas paixões.
De Leite de Vasconcelos, Mia Couto e Daniel Abrunheiro escorreram mais palavras para este trabalho.
A todos os que em Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e na Galiza autenticam este nosso idioma comum, para ininterruptos DESEenCOBRIMENTOS de resistência à massificação do gosto e à globalização sem escrúpulos, tributamos este LIVRO, que em música, poesia e teatro celebra os traços distintivos de uma língua que se reinventa e afirma pela multiculturalidade.
Como afirmou Carlos Cardoso, jornalista moçambicano assassinado por dar voz aos que não a tinham:
“No ofício da verdade, é proibido pôr algemas nas palavras”.
José Rui Martins
(1) - "Ethnologue, Languages of the World, 14ª edição, 2000.
UM EMBONDEIRO CHAMADO LEITE DE VASCONCELOS
- O que quer dizer “xirico”?
- É um passarinho! – Dizia a senhora sentada junto a mim, no avião - São muito barulhentos, xii!
- E “xicuembo”?
- Isso é feitiço, feitiçaria!
- Ah, já percebi! Uma criança que cresce na barriga é fruto de algo mágico, transcendente! – Dizia eu, interpretando o livro que a Iracema Vasconcelos me tinha arranjado na véspera. Regressava de Maputo e, mal o avião descolou, comecei a ler o Irmão do Universo, de Leite de Vasconcelos, mas logo me perguntei o que significariam aquelas palavras moçambicanas, que soavam tão bem no meio das portuguesas. Nem de propósito aquela velhota simpática ao meu lado, que me ajudou a entender o texto… não há coincidências, é destino mesmo!
Tínhamos ido tocar, uma vez mais, a Maputo, e nenhum familiar do Leite de Vasconcelos, falecido há pouco tempo, viera ao espectáculo. Chegado o último dia, corri a cidade, fiz telefonemas e, finalmente, consegui o número da sua esposa, Iracema, através do Machado da Graça. Marquei encontro à porta do Teatro Avenida. À hora combinada apareceu uma senhora elegante, lindíssima, com um rapaz de vinte e tal, seu filho. Apresentei-me e voltei a contar-lhe o que já explicara por telefone: que, numa outra viagem, descobrira um livro de poemas do seu marido, a partir do qual compusera umas músicas que agora trazíamos para tocar. Como, na ocasião anterior, ela não tinha assistido, gostaria de saber o que poderíamos combinar para que, desta vez, as ouvisse.
Convidou-nos para irmos a casa dela à noite, e assim foi. Recebeu-nos com a sala cheia de amigos, alguns dos quais eu já conhecia, como o Mia Couto e o Kok Nam. O Marcelino Alves, que nos foi apresentado nesse dia, falou-nos até altas horas do Leite de Vasconcelos e garantiu-nos que tocámos no coração de Iracema.
Eu sei que ela gostou de ouvir a Mariana cantar.
Lembro-me do Hugo e da Cláudia, em Inhambane, quando pedi para folhear uns livros que acabara de ver numa vitrina. Depois, verifiquei que eles já tinham comprado o único exemplar do Resumos, Insumos e Dores Emergentes, que de todos me despertara a maior atenção. Mais tarde, já em Maputo, surpreenderam-me com a oferta desse livro, que entretanto tinham encontrado numa outra livraria. Nessa altura, ainda não imaginava que viria a fazer tantas canções dos poemas do Leite de Vasconcelos.
Já o trabalho do “Cantos da Língua” andava na estrada quando soubemos da morte de Iracema, uns meses antes. Um ano após aquela noite em Maputo, voltei a contactar com ela por telefone, em minha casa, altura em que me falou na organização de uma homenagem. Disse-lhe que preparara mais umas músicas inspiradas em poemas do livro com que me presenteara.
- Quais? – Perguntou.
- O “Anunciação”, o “Embondeiro”…
- O “Embondeiro”, que bom! Ele gostava tanto do “Embondeiro”!
Carlos Peninha
Viseu, 6 de Novembro de 2006
ACERT
Vamos fazer shhh! e que o som vá revelando o que está oculto em cada melodia, em cada palavra, em cada riso.
Shhh! Quem se atreve a falar de todos os “quês” que a língua soltou, vindos sabemos lá nós de onde? Shhh! Que estes cantos ainda ardem, feitos ferida que dói e não se sente. Por todos os cantos que o canto encontrar, que nunca nos contentemos de contentes. Shhhh! Até sempre.
Amélia Muge
Gostar do som da nossa língua?
Maravilhar-se com os mil sotaques?
Musicar memórias e sonhos?
Sintonizar arte e técnica?
Potenciar humanas empatias?
Est’ACERT.
AJM (José Martins)
Mostra
Mostrar a língua é feio. Sempre me disseram isto. E eu fui guardando a língua dentro da boca.
Ter o coração na boca é falar sem pensar. Sempre me disseram isto. E eu fui empurrando a língua para o coração.
Até que veio o tempo de não seguir tudo o que ouvia. O tempo de começar a falar. Falar com a boca. Com uma das curvas das tripas. Com o nariz. Com um olho só.
Hoje, ganho a vida a mostrar a língua. Tenho outras partes do corpo para mostrar. Mas não mostro.
É feio.
Daniel Abrunheiro
Produção Artística
TRIGO LIMPO teatro ACERT
Intérpretação
Carlos Peninha
José Rui Martins
Lydia Pinho
Mariana Abrunheiro
Miguel Cardoso
Direcção Artística
José Rui Martins e Mariana Abrunheiro
Direcção Musical
Carlos Peninha
Arranjos
Carlos Peninha - todos os temas, excepto:
Miguel Cardoso -Cantos da Língua e Cantiga da Medula
António J. Martins - Saldo Negativo e De Sal de Linguagem Feita
Amélia Muge - Parolewords
Lydia Pinho - adaptação e revisão (arranjos para violoncelo)
Joaquim Teles (Quiné) – concepção e criação de partes de Timbila e Kissange
Ruben Alves - concepção e partes de acordeão
Concepção teatral
José Rui Martins - Ai! Se Sêsse!, Saldo Negativo, Habeas Pinho, Melão ao Mar, Só para Pobres, Luz Negra e Festejos de Aldeia
Produção artística
Amélia Muge e António J. Martins
Gravação e Masterização
António J. Martins
Misturas
António J. Martins, Carlos Peninha e Miguel Cardoso
Músicos Convidados
Amélia Muge
António J. Martins
José Medeiros
Quine
Ruben Alves
Design gráfico e ilustrações
José Tavares
Pesquisa literária
José Rui Martins
Técnicos de Som e Luz
Luís Viegas, Paulo Neto, Cajó Viegas
Fotos
Carlos Teles e Eduardo Araújo
Vídeo
Zito Marques